sábado, 23 de outubro de 2010

Madrugada

Acordou com um susto. Mais uma vez. A instabilidade do seu sono ali já lhe estava dando nos nervos. A cama do hospital era muito dura, não conseguia dormir direito. As paredes muito claras. O ambiente muito limpo. Nada era bom.
Nem ligava mais por estar chegando, por assim dizer, ao fim da estrada. “Um dia todo mundo morre”. Era o que repetia para todas as visitas que recebia. “Tomara que fiquem todos com torcicolo de tanto deixar cair a cabeça de lado”, pensava. Não queria todo aquele sentimentalismo. A piedade.
Ela sabia. Morrer aos dezenove não era morrer do jeito mais bonito. Principalmente levando em conta a doença que a pegara. Ela entendia. Era triste ver alguém tão novo morrer assim. Mas aceitava. “Se a hora chegou, chegou”. Essa era sua frase que a mãe mais odiava.
Respirou fundo. Queria voltar a dormir, mas não conseguia. Buscou no quarto com cheiro esquisito algo que pudesse lhe acalmar. Inútil. Não sabia de onde tiraram essa idéia de que quarto de hospital tem que ser daquele jeito. Tudo a incomodava. Mas nada mais do que o cheiro.
Álcool com formol e comida enlatada. Era isso. Ou quase, de vez em quando mudava. Alguém trazia flores (aquelas velhas rosas amarelas que se dá para avó doente), a tia perua com perfume francês vinha visitar, ou, como ela costumava dizer, “o cheiro de morte tomava conta do local”.
Cheiro tal, exalado da melancolia de todos os amigos e familiares ali presentes. Alguns tentavam disfarçar, fingir. Contavam as piadas mais infames e sem noção. Ela ria. Devia ser no mínimo educada.
Avistou o livro que ganhara do pai ao lado da cama. Nem era tão bom, mas servia para lhe dar sono. Tentou pegá-lo, mas o deixou escorregar. Acabou acordando ele. Sorriram.
Ela porque não conseguia evitar. O garoto era um dos motivos de estar lidando tão bem com tudo. Há duas semanas eles haviam fugido do hospital e ido, como explicou aos berros para a mãe, “viver um pouquinho o resto de vida que eu tenho!”. O que ela não disse foi que em quinze dias viveu mais do que em dezenove anos.
Dançaram pelas ruas da cidade, como loucos apaixonados. Entraram de penetras nas festas mais inusitadas. Foram perseguidos pela polícia numa moto roubada. Viajaram o mundo apenas com os olhos fechados. E fotos registraram, congelaram e guardaram os melhores momentos de toda aquela loucura.
Ele porque não podia negar. Amava-a. Um amor tão grande que nem o maior dos gigantes conseguiria abraçar. Era sua melhor amiga e seu grande amor. Aproximou-se. Curvou-se para apanhar o livro, ela o parou.
— Deixe-o aí, não vou precisar dele agora. — Mais uma vez sorriram juntos. Como uma orquestra em perfeita sintonia. Tudo entre eles era.
— Você deveria estar dormindo. Sua mãe não gosta quando você não tem tempo de descansar.
— Ela não está aqui. Ninguém está. Só nós dois...
— Onde você quer chegar com esta conversa?
— Você sabe muito bem. É o único item que falta da lista. Tenho que fazer tudo, senão não vai dar certo.
— Eu sei. E eu lhe prometi, não prometi? Nós vamos fazer. Tudo. Só que você ainda não está pronta.
— Estou sim! Me leve a uma farmácia, vai ver, posso comprá-las sozinha.
Ele riu. Ela fez bico.
— Sei que pode. Mas não foi neste sentido que usei a palavra “pronta”. Precisa se fortalecer, nossa loucura não fez muito bem ao seu organismo. Assim que você se recuperar, prometo que faremos. — Acariciou-lhe o rosto e beijou-lhe a face
— Mas isso não vai acontecer. Logo, logo eu vou mor...
— Já disse que não gosto quando você fala assim. — Encarou os olhos claros e sinceros. Como alguém tão puro podia morrer assim? Ele, apesar de tudo, ainda não entendia. — Há uma chance de...
— Uma em um milhão! — Essa era a única coisa que a indignava.
— Não é bem assim. — A insistência.
— Claro que é. Mas não quero discutir isso de novo. Ainda mais com você.
Silêncio. Ela suspirou. Permaneceram daquele jeito por mais um tempo. Outro suspiro. Estavam deitados juntos na cama desconfortável, do quarto com cheiro esquisito, no hospital melancólico.
— Uma moeda pelo seu pensamento. — Ele quebrou o silêncio.
— Só quero se for um beijo.
— Feito. — Ele a beijou. Mas um daqueles doces beijos. Por que com ele tudo parecia perfeito? Ela não sabia, mas adorava que fosse daquele jeito.
— Estava me lembrando daquele dia na praia. Do último dia da nossa viagem mágica. Daquela madrugada. — Fechou os olhos. — O vento em nossos cabelos, o som das ondas quebrando e depois vindo fazer cosquinhas nos meus pés. A areia, o céu, você ali ao meu lado. Deixando tudo mais perfeito. — Sorriu para si mesma, imaginando toda a cena e o local. — O clique da última foto. A definição do horizonte. Lembra?
Ele massageava a garota, passando a mão em seus cabelos, e não respondeu. Não precisava. Não havia como esquecer, ela sabia disso.
— Estar lá, naquele momento, me fez viajar e não pensar em... Tudo. Naquele momento a única coisa que me consumia era você, o meu amor por você, o nosso amor. O que eu mais queria agora era estar lá e sentir aquele cheiro novamente. O cheiro...
Ela parou. Ele também. Um barulho. Um apitar alto de várias máquinas. Médicos, enfermeiras, todos começaram a entrar. Medo e desespero. O garoto não sabia o que fazer. Seria esse o fim? Ela ia simplesmente embora, na frente dele? Ia correr para longe sem ao menos olhar para trás?
Um, dois, três. Tum! “Mais uma vez” repetia o médico. Um, dois, três. Tum!
Acordou com um susto. Olhou em volta. Quase não reconheceu o lugar. Tudo coberto de areia, as cortinas fechadas, a luz artificial e um grande painel com aquela foto. A última foto. Ele passou a mão delicadamente em seu rosto. Um arrepio. Molhou as mãos em um aquário e pingou nos pés dela. Fez cócegas. Ela sorriu. Uma lágrima caiu e rolou pelo seu rosto. Não havia barulho algum, nem sequer o menor dos ruídos, além do leve quebrar das ondas ao longe, vindos de um aparelho de som qualquer. Mais aquários espalhados pelo quarto exaltavam o cheiro da praia. Flores pra complementar com seu perfume e o cheiro de tudo aquilo que fizeram naquela noite. Até um pano imitava o céu!
Aproximando-se soprou os cabelos dela levemente. Que sentiu o hálito quente e fresco levar seus cachos e sorriu fechando os olhos.
— O que achou? — Perguntou ele colando o nariz no dela, exatamente como da outra vez. — Perfeito?
— Não, melhor ainda.
— Está sentindo?
— Estou. É o cheiro daquela madrugada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário