terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Desabafo - número dois (porque continuo não gostando de abreviações)

Não é que eu te odeie...
Na verdade é sim. Eu te odeio. Um ódio tão platônico quanto o amor que sinto por você. Amor tal que me faz me odiar.
O problema do ódio platônico é que ele acaba sendo ódio por si mesmo. Assim, no fim eu me odeio muito mais, e continuo te amando.
E fui eu que fiz isso. Tudo. Entre a gente sempre foi assim, tudo por minha conta. Porque por mais complicado, confuso e misterioso que você pareça, você foi bem claro, desde o início. Não, é não. Ponto final.
Mas minha cabeça achou que seria fácil com você. Ela quis isso. Porque até então, tudo estava sendo tão difícil. Ela nunca esteve tão enganada. Foi ela sozinha que me fez me apaixonar por você, que me fez odiar você, que me fez sofrer por... Esquece. O importante é que foi tudo eu quem fiz. Eu.
Eu me torturei. Eu me joguei. De cima de um penhasco. Eu jurei que no fim você me seguraria lá em baixo. Mas isso não aconteceu.
Então eu corri. Corri o mais rápido que pude, para outro lugar. Qualquer lugar. Dei voltas e voltas e acabei chegando à mesma cena. Todo mundo em volta de uma menina jogada. No chão. Desiludida.
Fui eu quem mais uma vez me fiz voltar. Eu criei alucinações nas quais você se importava. Eu transformei coisas que você fazia, que você falava. Eu dei a tudo um significado, porque eu precisava que algum existisse. Porque sou eu sempre que faço tudo.
Só que agora eu não posso mais. Eu cansei. De correr, de sofrer, de (não) chorar, de odiar e, mais do que tudo, de amar.
Eu tô aqui no chão frio, esperando ajuda. Passando a bola para você. É a sua vez de tentar, de correr, de me amar e de sofrer.
Eu desisti. É duro admitir, mas eu o fiz. Resolvi ficar aqui deitada. Quem sabe eu não durmo e descubro que tudo foi apenas um sonho ruim?

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Pais e filhos - O garoto

Primeiro de uma série de contos sobre o mesmo assunto.
 
Eram ótimos pais. Incríveis, de verdade. Luísa era sensata, carinhosa, artística. Alberto era divertido, atencioso, competente. Amavam-se. E amavam o filho, tenha certeza disso. Dias como esse aconteciam raramente.
O filho, bem, ele era assim... Como posso dizer? Como era o filho mesmo?
Ah, é. Ele era. Ele é...
“Uma fofura!”; “A coisa mais gostosa da tia!”; “Um homenzinho!”...
— O meu garoto! — Exclamou Alberto, jogando os braços para cima.
— O nosso garoto, você quis dizer. — Luísa disse, entrando na espaçosa sala da não tão grande casa rústica, vinda da cozinha.
— Só porque eu disse “meu” não quer dizer que ele não seja seu.
— Não, não quer, para nós que somos grandes o suficiente para entender, Alberto. Agora o garoto, só tem cinco anos. Você fica falando essas coisas depois ele vai achar que é só seu.
— Que coisa Luísa, claro que não. Ele é capaz de entender o que eu disse, ele sabe que você é mãe dele. Que ele também é seu. E o garoto acabou de fazer um gol em mim, sem eu deixar...
— No futebol de botão.
— E o quê que tem? Eu jogo futebol de botão sim. E com muito orgulho! Eu ensinei o garoto a jogar, tenho todos os créditos sobre os avanços dele. Assim como todo o direito de dizer “meu garoto”.
— Acontece que o garoto não queria aprender. Você acha que se ele tivesse tido a chance de escolher, ele não escolheria um videogame? Você quer que ele faça tudo o que você fazia quando menino, você quer que ele se torne você!
— Lá vem você com essa história de videogame de novo. O garoto tem que ser menino, tem que brincar de pique, esconde-esconde, jogar bola. Não ficar em casa trancado no quarto olhando para televisão controlando um boneco virtual fazendo o que ele devia estar fazendo. Olha, quando você ensinar o garoto a fazer alguma coisa nessa casa, como lavar a louça sem quebrar um prato...
— E por que eu ensinaria isso? Você fala como se eu não pudesse ensinar um dos meus “Hobbies” ao garoto.
— Primeiro, quando você diz Hobbies, parece que o futebol de botão é um para mim, o que me ofende um pouco, afinal não é só um “hobby” — Ele faz aspas no ar. — é muito mais do que isso, é...
— Aonde você quer chegar Alberto?
— Tá, você pode ensiná-lo a pintar sem manchar a blusa, um acorde no violão sem olhar as cordas ou o que você quiser. Meu ponto é: você vai dizer o quê? — Ela pensa — Exato. E eu deixo você dizer que ele é seu. Eu deixo você com os seus créditos. Agora me deixe ficar com os que me pertencem e dizer que ele é meu enquanto EU estou ensinando ao garoto.
Ela bufa. Ele volta o corpo pro jogo.
— Então filhão, onde estávamos? Filhão? Ué, cadê o garoto?
— Sei lá. Não era você que estava ensinando a ele?
Uns segundos de silêncio. Barulhos vindos do escritório. Entreolharam-se.
E lá estava O Garoto. Procurando veemente nas caixas, pela sua certidão de nascimento. Que ele era dos dois ele entendia, que tinha que ser menino, também. Mas do seu nome, até ele já havia esquecido.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Um pouco sobre a melancolia (em diálogos)


Diálogos VI

— Por que você fala tanto de morte nos seus textos?
— Não sei. Acho que ando um tanto quanto melancólica.
— Eu sempre fui melancólica, mas nem por isso falo de morte nos meus textos.
— Claro, você não escreve.

Diálogos VII

— Ainda assim. Se eu escrevesse não seria sobre morte.
— Tudo bem. Talvez eu ande melancólica demais.
— Melancolia demais não existe. Agora, depressão...

Diálogos VIII

— Acredito que possamos arrumar uma solução melhor.
— Ah, talvez você seja uma sociopata.
— É, talvez.

Diálogos IX

— Agora podemos mudar de assunto?
— Tudo bem... Farei o que você quiser, você pode mesmo ser uma sociopata e a qualquer momento virar com uma faca pra mim!
— Ai meu Deus... (suspiro).

Diálogos X

— Acho que os sociopatas não agem assim.
— Bem, é você que entende do assunto. Mas anda um pouco mais pra lá e deixe suas mãos onde eu possa ver.
— Não confia mais em mim?
— Não é bem assim... É só que é a minha vida que está em jogo.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Pela janela

Estar sozinha em casa naquela noite a assustava um pouco. Mas, só um pouco. Tá talvez fosse mais que isso. Tinha acabado de assistir um filme de terror com o namorado. O mais terrível de todos os filmes de terror de sua vida. Também o único, mas ninguém precisava saber.
Os pais saíram para um jantar com alguns amigos e o namorado precisava ir pra casa. Ou seja, estava sozinha naquela enorme, escura e sombria com a noite, caixa de concreto. Respirou fundo. Foi até seu quarto acendendo as luzes pelo caminho. Deixou a bolsa, os sapatos, e trocou o vestido por uma roupa mais confortável.
Voltou para a sala e ligou a televisão. Uma reportagem sobre desnutrição, um desenho animado, um filme qualquer com a pior dublagem do mundo. É, nada de interessante para ver. Desligou a televisão e continuou deitada no sofá, tentando pensar em algo para fazer... Nada. Sua mente estava vazia.
Pelo menos, estar vazia era melhor do que pensando em... Droga! Por que tinha que ter pensado naquilo? Agora estava novamente angustiada. Começou a olhar para os lados, desconfiada. Qualquer barulho lhe assustava.
Pam! Alguém bateu à porta, em seguida, uma risada. A risada mais que maléfica. Encolheu-se no sofá. E lembrou da cena mais horrível do filme. Estava sonhando. Só podia. Pam! Bateram novamente. Foi atender a porta com o celular em mãos. Parou.
Diante a entrada seu coração pulava de seu peito. Suava frio e tremia. Engoliu em seco. O que fazer? Colocou a mão na maçaneta e respirou fundo. Antes de abrir a porta ligou para o namorado. Não atendeu. De novo. A mesma coisa. Mais uma vez.
“Alô?” ela escutou do outro lado da linha. Alívio. Explicou tudo rapidamente. “Alô?” ele perguntou novamente. Ela não entendeu. “Isso é algum tipo de brincadeira? Se for não tem a menor graça!” ele disse furioso, estava ocupado com a mãe doente, não podia perder tempo com brincadeira de criança. Ela entrou em desespero. Tentou gritar para ele que era ela, que não estava brincando, que estava com muito medo, mas nada saía e ele desligou enfurecido. Soluço.
Quem estava batendo à porta cansou de esperar. A porta abriu-se sem ela fazer uma força sequer. Gritou. Viu quem era e saiu correndo. Escorregou na escada. Desespero. Ele vinha atrás dela. Com uma máscara de soldador e o avental de jardineiro. Nunca havia visto aquele sujeito em sua vida. Mas, mais assustador impossível.
Levantou-se, correu mais um pouco e escorregou novamente. Ele a alcançou. Colocou-a de pé rapidamente e pressionou a garota contra a parede. Tirou a máscara. E olhou diretamente para os olhos verdes e assustados.
Era bonito. Mas definitivamente um maníaco. Tirou a luva de uma das mãos e acariciou a pele macia da jovem. Nunca tinha visto beleza tão pura. Tirou a outra luva e correu suas mãos por toda a extensão do corpo dela. Linda.
Beijou o pescoço, os ombros e rasgou a camiseta velha. Por baixo da roupa confortável, a lingerie mais sexy que já tinha visto. Ela estava horrorizada, mas não conseguia gritar novamente. Não esperneou, pois não queria atiçar os instintos do estuprador. Ele arrancou a calça dela em um segundo. Entrou no primeiro quarto que encontrou e jogou-a na cama.
Arrancou a calcinha branca, mas antes que pudesse fazer qualquer coisa. Um grito, estrondoso, agudo e aterrorizado. Pam!
Acordou. Foi só um sonho. O mais horrível de sua vida. Olhou rapidamente em volta. Ainda estava na sala, havia adormecido com a reportagem sobre desnutrição. Escutou chaves na porta. Os pais, até que enfim. Desligou a televisão e subiu rapidamente. Tão rapidamente, que não pôde ver quem a observava pela janela.

domingo, 31 de outubro de 2010

Diálogos V


— Não acredito que eu fiz isso. Ele vai achar que to perseguindo ele!
— É, vai mesmo.
— Me mata!
— Calma não seja tão radical. Sem falar que você já queria que eu matasse todo mundo, daí vira uma chacina. Não rola.
— Tudo bem. Eu não quero ser amiga de uma serial killer
— Ah, mas se eu virar uma não se preocupa. Quando você descobrir, logo já estará morta.

sábado, 30 de outubro de 2010

Fases

Fases são aquelas etapas e processos do crescimento pelas quais todos passaram ou passarão. Denominadas pelos estudiosos como “fases” para, sei lá, parecer que alguma conclusão já foi tomada. É apenas mais um modo de tentar entender o comportamento humano. Enfim, não quero falar sobre como os mais velhos insistem nessa coisa de entender o nosso comportamento, quando às vezes agimos mais irracionalmente do que qualquer outro animal.
Quero dar a minha própria perspectiva sobre algumas dessas “etapas”. Sabe aquela fase da infância, quando você tem entre seis e sete anos, e se torna uma criança curiosa, em busca de entender todos aqueles dilemas para os quais você não conseguiu achar uma resposta plausível, na famosa “Fase do Porquê” que ocorre entre os dois/três anos de idade?
Então minhas primas estão passando por ela (Deus queira que seja só passando!) é uma das piores. Porque além de afetar quem está passando por ela, afeta as pessoas do círculo social da tal criança. Quer um exemplo?
Você está lá servindo de babá-por-um-dia a contra gosto. Daí vem aquela pobre, curiosa e inocente criança e diz “Posso fazer uma pergunta?”. Você vira e encara aqueles pequenos olhinhos trêmulos e lacrimejantes, sedentos por sabedoria. E aquela carinha de anjo sorrindo com quatro dentes de leite (porque o resto já foi) suplicando pra você responder uma perguntinha só... Não tem como dizer não.
Talvez eu tenha exagerado um pouco. Mas ainda assim, você responde na boa. O que ela poderia querer saber? Você diz sim e espera que ela pergunte “Por que o céu é azul?”, “Papai Noel existe?”, “Qual a fórmula da Coca-Cola?”. Ou ainda, naqueles casos mais extremos “De onde vêm os bebês?”. Perguntas fáceis e de respostas automáticas — “Porque sim”. “Não, digo, sim”. “Isso é mito!”. “Simples, cegonhas”).
E lá estão vocês, no parque, praça, quadra (qualquer lugar cheio de outras crianças, pais e afins). E ela solta a pergunta: “Você já tem menstruação?”. TODO MUNDO PARA. Não importa se você é menino ou menina. Ela vai perguntar do mesmo jeito. Vai te constranger do mesmo jeito.
Sabe por quê? Porque primeiro: você não vai saber o que responder. Segundo: as outras crianças não vão saber o que é “menstruação”. Terceiro: quando você tentar explicar, aquelas da “Fase do Porquê” vão ficar o tempo todo perguntando por que. Pra tudo.  E pra finalizar: as mães que estão por perto vão achar que você é uma pessoa pervertida ensinando coisas insanas para os filhos delas. Daí você vai ganhar de presente uma ordem jurídica que vai te proibir de chegar perto do tal parque, praça ou qualquer outra coisa.
O pior nessa história toda, é que no final, no final mesmo, depois de tudo o que você já passou. O constrangimento, a vergonha, a ordem judicial. Ainda vem aquela criança um pouco mais velha, que está passando pela “Fase da Mentira” e diz que tudo o que você disse não é verdade. Ela acaba com você. Com a sua moral. Porque a Criança Curiosa vai acreditar nela e não em você.
E as únicas conclusões que podemos tirar disso tudo é que é inútil discutir. Por maior que seja sua paciência. No final uma criança malvada vai pisotear a sua moral. Então se sua irmãzinha, priminha, vizinhinha ou qualquer outra coisa que defina uma criança pequena vier te fazer uma pergunta, por mais inocente que ela seja (a pergunta, não a criança, acho que deu pra perceber que no fundo nenhuma delas é), não tente responder do jeito certo, ela não vai acreditar em você mesmo.
E que mais inútil do que tentar explicar, é tentar entender as “fases”. Porque elas vão se influenciar, se misturar e perder o sentido. Daí não adianta criar conceitos ou tirar conclusões. As criancinhas não vão prestar atenção e vão, simplesmente, bagunçar tudo.
 
...Essa foi uma visão bem pessimista da infância, não levem tão a sério.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Diálogos IV

(pra compensar o II)
 
— Já vi muito filme romântico. As mocinhas são sempre assim, idiotas e iludidas.
— Vocês sabem que estão falando de mim, e eu tô aqui né?
— Sei. E acabei de te descrever da maneira mais exata.

Diálogos II

(atendendo ao pedido de três pessoas, mas depois não digam que eu não avisei)

— Se ele pelo menos te desse bola...
— Acho que isso é o mais irresistível.
— Não deveria. Eu hein. Mas te entendo.
— Como? Você nunca gostou assim de alguém.
— Eu tenho uma imaginação fértil.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Superstições

Estavam deitados no chão do quarto da irmã dele. Já fazia um bom tempo que esperavam todos os adesivos no teto pararem de brilhar. Olhou para ela. A garota mais divertida com quem já tinha saído. Linda, inteligente, perfeita. Isso se perfeição existisse.
No sábado passado eles se declararam. Pela primeira vez. Estavam mais ou menos como agora. Deitados na grama, olhando pro céu estrelado. Afastados do resto da turma que cantava ao redor da fogueira improvisada.
Olhou novamente para o teto com os vários adesivos. Apenas uma lua e uma estrela persistentes permaneciam brilhando. Aos poucos a lua foi ficando mais clara, até que escureceu. A estrela continuava lá. Ele parou com os devaneios. E voltaram a conversar. Sobre isso, aquilo, etc. e tal.
— Ah, fala sério? Nenhum tipo de superstição?
— Nenhunzinho sequer.
— Gato preto? Bater na madeira? Contar o número das placas? Quebrar espelhos?
— Não, não, não e não.
— Nem nas boas você acredita? Ou naquelas meio personalizadas?
— Personalizadas?
— É, tipo... Ah sei lá. Quando você diz que uma coisa só acontece se outra acontecer, e ela acontece. Sabe?
— Acho que sim. Mas não, nem nessas. — Concluíram que o garoto odiava superstições. Ele riu.
Ficaram em silêncio novamente. Ela encucada com a falta de fé do namorado. Ele observando o teto “estrelado”.
— Lembra quando eu disse que meu amor por você é tão grande que só ia acabar quando a última estrela parasse de brilhar? — Apontou para o último adesivo que resistia, mas começava a sumir.
Escuridão.
— E então? — Ela perguntou.
— É. Nada. O meu amor é mais forte do que isso. Mas acho melhor acender a luz, só pra garantir.
Fazer o que? Ele não gostava de qualquer tipo de superstição.

domingo, 24 de outubro de 2010

Diálogos III

(porque o I e o II não vale a pena postar)

— Não que eu o ame. Eu não amo. Amar é um verbo muito forte. E nesse caso até muito longo. Só que, quando penso nele... Mas acredite em mim, não o amo.
— Claro. Você não o ama tanto quanto faz frio aqui em Genebra.

sábado, 23 de outubro de 2010

Madrugada

Acordou com um susto. Mais uma vez. A instabilidade do seu sono ali já lhe estava dando nos nervos. A cama do hospital era muito dura, não conseguia dormir direito. As paredes muito claras. O ambiente muito limpo. Nada era bom.
Nem ligava mais por estar chegando, por assim dizer, ao fim da estrada. “Um dia todo mundo morre”. Era o que repetia para todas as visitas que recebia. “Tomara que fiquem todos com torcicolo de tanto deixar cair a cabeça de lado”, pensava. Não queria todo aquele sentimentalismo. A piedade.
Ela sabia. Morrer aos dezenove não era morrer do jeito mais bonito. Principalmente levando em conta a doença que a pegara. Ela entendia. Era triste ver alguém tão novo morrer assim. Mas aceitava. “Se a hora chegou, chegou”. Essa era sua frase que a mãe mais odiava.
Respirou fundo. Queria voltar a dormir, mas não conseguia. Buscou no quarto com cheiro esquisito algo que pudesse lhe acalmar. Inútil. Não sabia de onde tiraram essa idéia de que quarto de hospital tem que ser daquele jeito. Tudo a incomodava. Mas nada mais do que o cheiro.
Álcool com formol e comida enlatada. Era isso. Ou quase, de vez em quando mudava. Alguém trazia flores (aquelas velhas rosas amarelas que se dá para avó doente), a tia perua com perfume francês vinha visitar, ou, como ela costumava dizer, “o cheiro de morte tomava conta do local”.
Cheiro tal, exalado da melancolia de todos os amigos e familiares ali presentes. Alguns tentavam disfarçar, fingir. Contavam as piadas mais infames e sem noção. Ela ria. Devia ser no mínimo educada.
Avistou o livro que ganhara do pai ao lado da cama. Nem era tão bom, mas servia para lhe dar sono. Tentou pegá-lo, mas o deixou escorregar. Acabou acordando ele. Sorriram.
Ela porque não conseguia evitar. O garoto era um dos motivos de estar lidando tão bem com tudo. Há duas semanas eles haviam fugido do hospital e ido, como explicou aos berros para a mãe, “viver um pouquinho o resto de vida que eu tenho!”. O que ela não disse foi que em quinze dias viveu mais do que em dezenove anos.
Dançaram pelas ruas da cidade, como loucos apaixonados. Entraram de penetras nas festas mais inusitadas. Foram perseguidos pela polícia numa moto roubada. Viajaram o mundo apenas com os olhos fechados. E fotos registraram, congelaram e guardaram os melhores momentos de toda aquela loucura.
Ele porque não podia negar. Amava-a. Um amor tão grande que nem o maior dos gigantes conseguiria abraçar. Era sua melhor amiga e seu grande amor. Aproximou-se. Curvou-se para apanhar o livro, ela o parou.
— Deixe-o aí, não vou precisar dele agora. — Mais uma vez sorriram juntos. Como uma orquestra em perfeita sintonia. Tudo entre eles era.
— Você deveria estar dormindo. Sua mãe não gosta quando você não tem tempo de descansar.
— Ela não está aqui. Ninguém está. Só nós dois...
— Onde você quer chegar com esta conversa?
— Você sabe muito bem. É o único item que falta da lista. Tenho que fazer tudo, senão não vai dar certo.
— Eu sei. E eu lhe prometi, não prometi? Nós vamos fazer. Tudo. Só que você ainda não está pronta.
— Estou sim! Me leve a uma farmácia, vai ver, posso comprá-las sozinha.
Ele riu. Ela fez bico.
— Sei que pode. Mas não foi neste sentido que usei a palavra “pronta”. Precisa se fortalecer, nossa loucura não fez muito bem ao seu organismo. Assim que você se recuperar, prometo que faremos. — Acariciou-lhe o rosto e beijou-lhe a face
— Mas isso não vai acontecer. Logo, logo eu vou mor...
— Já disse que não gosto quando você fala assim. — Encarou os olhos claros e sinceros. Como alguém tão puro podia morrer assim? Ele, apesar de tudo, ainda não entendia. — Há uma chance de...
— Uma em um milhão! — Essa era a única coisa que a indignava.
— Não é bem assim. — A insistência.
— Claro que é. Mas não quero discutir isso de novo. Ainda mais com você.
Silêncio. Ela suspirou. Permaneceram daquele jeito por mais um tempo. Outro suspiro. Estavam deitados juntos na cama desconfortável, do quarto com cheiro esquisito, no hospital melancólico.
— Uma moeda pelo seu pensamento. — Ele quebrou o silêncio.
— Só quero se for um beijo.
— Feito. — Ele a beijou. Mas um daqueles doces beijos. Por que com ele tudo parecia perfeito? Ela não sabia, mas adorava que fosse daquele jeito.
— Estava me lembrando daquele dia na praia. Do último dia da nossa viagem mágica. Daquela madrugada. — Fechou os olhos. — O vento em nossos cabelos, o som das ondas quebrando e depois vindo fazer cosquinhas nos meus pés. A areia, o céu, você ali ao meu lado. Deixando tudo mais perfeito. — Sorriu para si mesma, imaginando toda a cena e o local. — O clique da última foto. A definição do horizonte. Lembra?
Ele massageava a garota, passando a mão em seus cabelos, e não respondeu. Não precisava. Não havia como esquecer, ela sabia disso.
— Estar lá, naquele momento, me fez viajar e não pensar em... Tudo. Naquele momento a única coisa que me consumia era você, o meu amor por você, o nosso amor. O que eu mais queria agora era estar lá e sentir aquele cheiro novamente. O cheiro...
Ela parou. Ele também. Um barulho. Um apitar alto de várias máquinas. Médicos, enfermeiras, todos começaram a entrar. Medo e desespero. O garoto não sabia o que fazer. Seria esse o fim? Ela ia simplesmente embora, na frente dele? Ia correr para longe sem ao menos olhar para trás?
Um, dois, três. Tum! “Mais uma vez” repetia o médico. Um, dois, três. Tum!
Acordou com um susto. Olhou em volta. Quase não reconheceu o lugar. Tudo coberto de areia, as cortinas fechadas, a luz artificial e um grande painel com aquela foto. A última foto. Ele passou a mão delicadamente em seu rosto. Um arrepio. Molhou as mãos em um aquário e pingou nos pés dela. Fez cócegas. Ela sorriu. Uma lágrima caiu e rolou pelo seu rosto. Não havia barulho algum, nem sequer o menor dos ruídos, além do leve quebrar das ondas ao longe, vindos de um aparelho de som qualquer. Mais aquários espalhados pelo quarto exaltavam o cheiro da praia. Flores pra complementar com seu perfume e o cheiro de tudo aquilo que fizeram naquela noite. Até um pano imitava o céu!
Aproximando-se soprou os cabelos dela levemente. Que sentiu o hálito quente e fresco levar seus cachos e sorriu fechando os olhos.
— O que achou? — Perguntou ele colando o nariz no dela, exatamente como da outra vez. — Perfeito?
— Não, melhor ainda.
— Está sentindo?
— Estou. É o cheiro daquela madrugada.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

(Des) Pedaços

O pai saiu do cômodo sério e com passos firmes. Um tanto envergonhado pela gritaria que havia acontecido há pouco no quarto. A mãe veio logo atrás, a raiva explicita em cada movimento. Voltou a gritar seguindo o marido.
“Ex, agora.” Pensou a filha sentada à mesa para almoçar.
A mãe visivelmente exaltada, delatava tudo o que ele haveria feito. O mundo precisava saber.
Expulsou-o de casa. Era o fim, afinal.
O pai, como um velho CD arranhado, apenas repetia que não iria a lugar algum. Se queria convencer os filhos ou a si mesmo, não se sabe.
Uma cena incomum. Incomum para aquela família que se despedaçava.
Em seu quarto a caçula chorava por uma dor que não conseguia entender. Os outros fingiam que nada havia acontecido. Que aquilo não era com eles. Concentravam-se na comida, nas matérias que iram estudar, nas notas, na rotina.
Quando o pai sentou-se à mesa para a refeição, uma dúvida surgiu na cabeça da menina. Tão rápido quanto uma luz sendo acesa. Assim como um clique de uma máquina. Clique.
A dúvida a tornou diferente dos outros. Mesmo que só por um momento. Como se fosse a única cor no meio de um filme preto e branco.
— Pai, — Começou baixinho. — Se tu realmente sair de casa... — Era agora, a pergunta que não queria calar. — Compra um apartamento em Tirol?
— Eu não vou sair de casa. Não vou a lugar algum. — Respondeu o pai, um tanto quanto frio.
— Tudo bem, — Estava mais tranqüila, por finalmente ter falado. — Mas não esquece. — Ela precisava garantir.

Antes de tirar rápidas conclusões sobre como a garota não entendeu o que toda a situação significava, pense nos acontecimentos e na pergunta. Sei que concluirá que aconteceu exatamente o contrário. Foi por entender totalmente a semântica da história que ela perguntou aquilo. Oras, não foi com ela. Ela não tem culpa do pai ter feito o que fez.
Saber que nada de muito grande mudaria em sua vida era o principal. Ela continuaria sendo sua mãe. Ele continuaria sendo o seu pai. Apenas não estariam mais juntos.  Estariam em casas e vidas separadas. Com apenas um elo de ligação. Ela não mudaria de escola ou perderia amigos. Ela ficaria bem. Ela vai ficar bem. Todos vão.

“No final tudo dá certo, se ainda não deu certo, é porque ainda não chegou ao fim”
Fernando Sabino

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Desabafo - número um (porque nunca gostei de abreviações)

Todo mundo era feio. Depois todo mundo ficou bêbado, e eu conheci todo mundo. E todo mundo era engraçado, fofo, inteligente. E daí todo mundo ficou bonitinho e evoluiu. Exatamente como a historinha que o professor contou. Agora todo mundo é lindo! E idiota. Mas não entenda mal, não foi birra minha, todo mundo ficar assim, eu não determinei isso por não conseguir me entender com todo mundo.
O pior é que por mais que eu tente, não dá, ainda, pra esquecer todo mundo. Porque todo mundo, é muita gente. :\






 Eu espero que ninguém leia isso. E no sentido mais literal da palavra.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Começos


Era linda. Mesmo depois de tanto tempo. Não cansava de olhá-la. Não havia como. Envolvida pelo algodão tornava-se mais angelical, e ele sentia-se nas nuvens, sempre. Não acreditava. Lembranças.
Conheceram-se não havia muito tempo. Em um parque qualquer pela cidade. O mais bonito. Talvez a presença dela o tivesse transformado, o parque e o homem. De vestido florido e cabelos ao vento ela lia. Pouco se importava com o mundo a sua volta, estava em outra dimensão.
Ele passava pela árvore, na qual ela se encostara, pela milésima vez. Ensaiava um cumprimento. Olá como vai. Não era bom, nada discreto. Resolveu se aproximar, assim, como quem não quer nada. Compartilhar da paz imensurável que dela transbordava. Ai. Caiu.
Perfeito. Ela olhou. Riu. Devia prestar mais atenção por onde anda. Ele concordou. Cumprimentos, um aperto de mão, foi o suficiente. Ela percebeu. Conversaram então, besteiras, política, o mundo atual. Tudo fazia sentido. Marcaram um encontro. Mais um, e outro.
Até que ela o convidou pra entrar. Finalmente, a certeza da vitória. Inacreditável. Nem era tão bonito assim, mas ela. Ela era linda. E cada sorriso que lhe dava era novo, uma sensação nova. O mais lindo e sincero olhar do mundo. Não conseguiria mentir, o olhar e o homem, não sobre como ela era. Um suspiro.
Era o cara mais divertido que já conhecera. Sensato, direito, inteligente. Mas lento. Deu todas as indiretas. Ele nada. Arriscou. Chegou mais perto, e quase disse alguma coisa. Um beijo. Nada mais devia ser dito.
Deixaram-se levar pelo amor. Isso, amor. Ele a amava. Queria lhe dizer, mas não sabia como. Eu te amo. Simples, um encanto. Eu também. Nostalgia, para os dois. Não dançaram pela sala, mas queriam. O que não queriam era parecer muito bobos.
Um ano. Mas já? O mais feliz da minha vida. Da nossa. É, nossa, agora eram um só. Não acreditavam. Era muita felicidade, qualquer coisa era motivo de alegria. A faculdade, o emprego, o noivado. Um sorriso, aquele sorriso. Era como a primeira flor a desabrochar na primavera, aquela que diz que tudo agora vai voltar a ser bonito.
A casa dos sonhos. Não era deles, mas com o tempo, tudo se tornou. Cada cantinho, cheiro e poeira. E o que mais importava, eles pertenciam um ao outro. Há muito tempo.
De repente, não eram mais só eles dois. Eram três. Como contar pra ele? Ele não ia gostar. Ela se enganou. Só brigaram pra escolher o nome. Roberto, o nome do tio herói de guerra. Não mesmo, dá azar, não vou colocar no meu filho um nome de gente morta. Arthur, que é nome de rei, muito melhor. Mas esse rei também já morreu. E agora? Se for menina, Amélia. O nome da sua mãe? Só pra me lembrar todo dia que ela existe? Maria então. Mas isso é nome de bolacha. A dúvida. E agora?
Não importava mais. O bebê mais lindo que eles já viram. Riu, pros dois. O nome ficou Arthur mesmo. A mulher tem sempre razão. Eram uma família agora. E uma das mais felizes. O novo. Aquilo sempre funcionou pra eles, sempre trouxe mais alegria.
Tossiu. Não foi nada. Tomou um comprimido qualquer pra gripe fraca. De novo. Não passou. Uma tontura, dor na cabeça. Desmaiou. Medo. Foram ao hospital, até que enfim. Desespero. Uma folha, um diagnóstico. Como a vida podia mudar tanto de uma hora pra outra? Mas já tinha acontecido. No começo. Só que dessa vez era o fim.
Ela não agüentava mais. Aquelas pessoas, aquele quarto, a luz, o cheiro. Queria a casa dela. O lugar que era deles. O câncer, bem, não tinha jeito.  Queria morrer em casa. Tristeza. Uma sensação velha, mas que a muito não experimentava. Era o amor da sua vida. Arthur entendeu. Quando voltou da faculdade e a mãe não estava lá. Chorou. Choraram. Lembranças.
Mas agora, agora ela voltara. Estava com ele, ali. Na cama, no leito. Com ele. Segurava a sua mão e sorria. O sorriso. Uma alucinação. Era o seu fim, mas como? Sua vida acabara anos antes. Não, não era um novo fim. Apenas mais um começo.